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A luta por água no Território do Bem: o direito que ainda não chega a todos

Comunidades de Vitória convivem com décadas de escassez e esperam que o Reservatório de São Benedito traga dignidade às partes mais altas

Por Isabelle Vasconcelos e Esther Laurentino

Você já imaginou como seria viver sem água? Como afetaria sua rotina, seus hábitos e sua saúde? Os moradores do Território do Bem sabem bem como é viver nessa realidade, incluindo a moradora do bairro São Benedito, Meirieli de Barro, 43 anos. Ela relata que já chegou a ficar meses sem água e precisou recorrer a cuidados paliativos, pois nem mesmo o caminhão-pipa conseguia chegar até o local onde mora por ser uma área alta de escadaria.

“O carro pipa não sobe nas escadarias e ficávamos a madrugada toda esperando a água cair e quando caía enchíamos as vasilhas, mas era uma torneira para dez moradores”, explica Meirieli.

A água é um dos direitos fundamentais garantidos pelo Art. 6º da Constituição Federal de 1988 – direito ao saneamento básico e à moradia digna – , porém essa ainda não é a realidade de todos os brasileiros, especialmente em locais de alta vulnerabilidade social. A defensora pública Samanta Negris, explica que no Brasil ainda existe uma desigualdade muito grande ao acesso à água, principalmente em áreas periféricas, núcleos urbanos informais e comunidades rurais.

Nas nove comunidades que formam o Território do Bem, a falta d’água é um problema antigo e constante, reflexo de anos de descaso e promessas não cumpridas. Por serem regiões de relevo íngreme, existem dificuldades técnicas de abastecimento, já que a pressão da rede não é suficiente para levar a água até as partes mais altas. Esse problema impacta diretamente a rotina, a higiene e saúde das famílias.

Território do Bem: união e identidade comunitária

O Território do Bem é formado pelos bairros e comunidades de Itararé, Jaburu, Bonfim, Penha, Floresta, Consolação, Gurigica, Engenharia e São Benedito. A região é resultado de ocupações irregulares entre as décadas de 1920 e 1970, marcadas pelo crescimento desordenado e pela grande degradação ambiental.

O nome “Território do Bem” nasceu da união entre moradores e lideranças comunitárias, que decidiram se organizar para enfrentar problemas comuns, como a falta de infraestrutura, saneamento, segurança e educação. Além disso, havia o desejo de mudar a forma como os bairros eram vistos. Por muito tempo, pessoas de fora colocaram rótulos negativos nessas comunidades, reforçando o preconceito e o estigma social.

Segundo o líder comunitário Valmir Dantas, essa realidade de precariedade afeta toda a região. Ele conta que morar em área de morro é a condição de muitos e que a desigualdade é vista de perto. Valmir ainda relata que, mesmo após várias tentativas de diálogo com a Cesan, os moradores continuam sofrendo diariamente com a falta d’água.

Para Valmir, “quem dá nome ao local é quem mora nele”. Foi com esse espírito que o grupo escolheu o nome “Território do Bem”, como forma de valorizar sua identidade e chamar a atenção do poder público para as necessidades da região.

As primeiras tentativas de resolver a falta d’água

Grande parte dessas comunidades sofre com a falta de abastecimento regular de água, como relatado em novembro de 2020, quando moradores do Território ficaram quatro meses sem água. Os bairros mais afetados são em regiões mais altas, entre eles está São Benedito, um dos bairros mais antigos e populosos do Território do Bem, onde o problema da falta d’água é ainda mais evidente e tem impacto direto na rotina, na higiene e na saúde das famílias.

Muitas residências estão em encostas e morros, com tubulações antigas, improvisadas ou ausentes, o que faz com que o fornecimento seja intermitente e desigual.

Entre as décadas de 1960 e 1970, surgiram as primeiras tentativas de resolver o problema da escassez da água em São Benedito. A primeira solução encontrada foi a construção de uma lavanderia comunitária, em 1968, com materiais cedidos pela Prefeitura de Vitória e ajuda dos próprios moradores. A lavanderia foi essencial para a comunidade, mas durou pouco tempo e logo foi desativada.

Poucos anos depois, em 1973, foi inaugurado o Chafariz do Beco, outra tentativa de garantir o acesso à água. Também acabou sendo desativado, desta vez por desavenças entre os próprios moradores.

Em 1977, chegou finalmente o abastecimento público de água às residências — uma grande diferença em relação a outras regiões de Vitória, que já contavam com o serviço desde 1909, segundo a Prefeitura.

Mesmo assim, a água nunca chegou de forma plena. A topografia acidentada, as redes antigas e improvisadas e a ausência de manutenção contínua fazem com que o abastecimento ainda seja irregular. Mais de meio século depois, o cenário não mudou muito. A água ainda chega em horários específicos – quando chega.

São Benedito: o alto custo da água que não chega

Nos dias de hoje, ainda há relatos da inconsistência da água. Moradores relatam terem que armazenar água em potes, vasilhas, garrafas pets, baldes e caixas d’água para garantir que terão ao longo dos dias. A moradora Idalgiza Rabelo, 79 anos, conta que faz esse armazenamento por receio de ficar sem água, já que ela não cai o dia todo, só de manhã e de noite.

“Não confio porque a água não cai o dia todo, ela cai até umas 08:30h ou 9h e depois ela vai embora e só vai voltar a noite, depois de 22h ou 00h”, complementa a moradora.

A moradora Meirieli de Barro, 43 anos, também relata que a falta d’água afeta muito a rotina e, principalmente, a saúde emocional. Ela conta que precisava acordar de madrugada para esperar a água descer das torneiras externas e, só então, conseguir encher as vasilhas e os baldes. “A gente esperava a madrugada toda pra cair a água e aí a gente enchia as vasilhas, e assim, era uma torneira para dez moradores.”, diz.

Ouça a entrevista completa de Meirieli de Barro. 

Mesmo com o abastecimento irregular, a conta não deixa de chegar. Os moradores questionam por que precisam pagar por algo que não recebem. É o caso da aposentada Maria Edna Alves, 70 anos, que relata que a conta pesa no orçamento e questiona o fato do talão chegar mesmo que a água não chegue.

De acordo com a Companhia Espírito-santense de Saneamento (CESAN), os imóveis que possuem ligação ativa de água e/ou esgoto pagam de acordo com o consumo registrado no hidrômetro, mais uma tarifa que varia conforme o tipo de uso do imóvel, seguindo as regras da Agência Reguladora. Isso significa que as pessoas pagam tanto pelo que consomem quanto por uma taxa fixa definida pela categoria do imóvel, e mesmo quando a água não chega de forma regular, a cobrança continua sendo feita da mesma maneira.

Além da conta d’água, a jornalista comunitária Gabrielly Almeida, 28 anos, relata que muitas vezes é necessário comprar água mineral para beber e tomar banho, o que aumenta o gasto com água e pesa ainda mais no orçamento das famílias, além de alguns estabelecimentos subirem o preço das águas ao notarem uma grande procura.

“Ficar vários dias sem água em casa chega ser desesperador” declara a Gabrielly.

Gabrielly conta que, mesmo com soluções paliativas, como as reservas de água que faz em casa, quando a água fica muitos dias sem chegar, esses reservatórios não são suficientes. Por isso, ela precisa comprar água ou pedir em outros bairros. Isso afeta diretamente sua rotina, desde cozinhar e manter a higiene básica até cuidar da própria saúde.“Eu tenho que trocar roupa de cama, toalhas diariamente devido a minha saúde, então preciso lavar roupa a cada dois dias, mas acaba que tenho que deixar juntar e lavar roupa uma vez na semana pra não ficar usando água direto, por medo de acabar e ficar totalmente sem água.”, diz.

Ela comenta também que já viu vizinhos precisarem fechar seus estabelecimentos por causa da falta d’água, como aconteceu com o proprietário Edson José da Costa, dono do estabelecimento “Bar e Distribuidora: Alemão e Família”. Ele conta que teve que interromper o funcionamento por um tempo, já que manter o comércio aberto exige higiene, e sem água isso se torna impossível.

”Eu fazia salgado, mas tive que parar porque não tinha água para lavar as mãos, a água é a base de tudo.”, diz o proprietário.

Edson também compartilhou como a rotina da família foi afetada: muitas vezes, seus filhos não puderam ir à escola por falta de roupas limpas ou até por não conseguirem tomar banho. “Não tem como lavar a roupa deles, não tem como tomar banho, então é melhor nem levar pra escola.”, explica.

Diante dessas dificuldades, ele relata que não teve outra alternativa a não ser buscar uma solução temporária. Para isso, pagou em torno de 200 reais por uma encanação que trouxesse água de cima diretamente para sua casa. Edson também menciona que a chegada do novo Reservatório de São Benedito traz a expectativa de resolução do problema.

Os moradores tentam há anos resolver o problema da falta d’água com a ajuda da Defensoria Pública, que atuou como intermediária entre a comunidade e o órgão responsável pelo abastecimento. Gabrielly Almeida conta como foi esse processo: foram necessárias várias reuniões entre moradores e a Defensoria para que as cobranças por melhorias finalmente fossem ouvidas pela Prefeitura e pela CESAN. As redes de TV também tiveram um papel importante ao mostrar as dificuldades enfrentadas por muitos e dar visibilidade ao problema.

De acordo com o líder comunitário Valmir Dantas, as obras do Reservatório de água de São Benedito começaram há aproximadamente 16 meses. “A casa de máquina já está pronta, faltam algumas coisas para ele poder ser ativado.”, relata. Ele também reforça a cobrança dos moradores pelo direito à moradia digna e por ter água todos os dias para melhorar a qualidade de vida.

A esperança que vem do reservatório

Hoje, os moradores de São Benedito vivem entre o improviso e a esperança. A construção do reservatório de São Benedito,  é vista como a principal alternativa para resolver o problema nas áreas mais altas não só do bairro de São Benedito, mas também de outras áreas altas do Território do Bem.

De acordo Valmir, são cerca de 50 anos de espera por esse reservatório que, mesmo pronto, já teve o prazo de entrega alterado algumas vezes, incluindo a previsão para o final de 2025. Ele destaca que a mesma bomba que vai alimentar o reservatório de São Benedito também abastecerá o reservatório de Jaburu, atendendo mais de 25 mil famílias do território. Para ele, a chegada do reservatório traz esperança e representa liberdade para a comunidade.

Essa expectativa não está apenas nas palavras de Valmir, mas também nas dos moradores. Meirieli afirma que aguarda esse reservatório há muito tempo, e espera que ele resolva os problemas de falta de água e que a água chegue como em qualquer local. Para Idalgiza, a expectativa de todos os moradores é que melhore a situação em 90%. Edson reforça esse sentimento ao dizer: “eu espero que melhore, a chegada desse novo reservatório é a nossa esperança para nossa vida voltar ao normal”. Gabrielly também acredita na mudança e afirma que vai ajudar bastante porque, como a água descerá de cima para baixo, ela terá força para subir nas casas. Já Edna completa: “estamos contando com ele, esperamos que ele ajude”.

Segundo a CESAN, o reservatório de São Benedito integra um empreendimento de R$ 10 milhões que também inclui a reforma do reservatório Jaburu, a nova estação elevatória de água tratada de Gurigica, além de adutoras e da substituição e ampliação de redes para acompanhar o crescimento dos bairros atendidos. A companhia afirma que o objetivo é garantir maior oferta e segurança hídrica para a população. A CESAN também destaca que o contrato está em andamento e que a previsão de conclusão é para o primeiro semestre de 2026, o que, segundo a instituição, permitirá mais oferta de água e mais segurança hídrica para os bairros do entorno.

Esse conteúdo é resultado da parceria do Calango Notícias com o curso de Jornalismo da FAESA Centro Universitário (@faesa_oficial) e a Defensoria Pública do ES (@defensoriapublica_es).

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