É preciso respeitar as narrativas linguísticas que se criam nas comunidades periféricas e se adequar a elas para politização e emancipação das comunidades
Historicamente, o Brasil é um dos países que mais mata identidades negras e indígenas e isso se deu através da ideologia pregada de um indivíduo ser superior a outro. A diáspora africana deixou e deixa muitas marcas no país. Essas marcas advêm do tráfico de escravizados negros e negras que, ao chegarem no Brasil, perdiam toda a sua cultura, sua epistemologia e sua identidade no processo de desafricanização. Esse era um processo torturador que consistia em batizar os escravizados com nomes cristãos.
Ao desembarcarem, os negros vivos, – pois muitos morriam no caminho, – eram levados para a primeira violência psicológica que existiu: o aniquilamento da sua identidade; a raspagem dos cabelos e a imposição da língua e da religião cristã. Essas eram práticas de violências pioneiras no processo da formação da identidade, ainda desconhecida pelos brasileiros/as e escondida nos livros didáticos.
Um processo de apagamento da memória do passado, na busca de doutrinar corpos pretos/as, doutrinar culturas e apregoar o Evangelho e a cultura europeia como as únicas certezas, sendo todas as demais como erradas.
A obrigação que se impôs à população escravizada de usar a língua cristã europeia ensinada pelos padres Jesuítas que se apresentavam como salvadores brancos, de olhos azuis, mas que também nasceram na África, é um grande paradoxo. A mensagem que se reflete é: Você pode vir da África e virar branco também, oras! Jesus Cristo é Branco e foi de lá que ele veio. Isso pode soar engraçado, mas é triste.
A imposição de uma língua como certa e de outra como errada, nos faz pensar no processo de adaptação que o povo tem em aceitar, incluindo a linguagem das comunidades periféricas. O que a sociedade coloca como certa é a formalidade da oralidade e quando isso não acontece dá-se o nome de língua informal, mas a pergunta que se faz é: o que é formal? A quem se destina essa formalidade?
A formalidade me remete às amarras, às correntes, ao chicote, ao vira-mundo e à gargalheira, me lembrando sempre dos castigos que meu povo sofria quando não conseguia se adaptar aos costumes europeus e resistia só, lutando pelo direito de exercer e fazer respeitar sua própria cultura.
Assim foi por anos e anos até chegarmos às revoluções quilombolas e às pressões econômicas e políticas, que culminaram com a princesa Isabel decretando “o dia da abolição da escravatura”. Este dia é lembrando como uma Vitória para uns e, para muitos, um dia de medo e terror nas ruas. O corpo marginalizado e escravizado estaria agora “liberto”. Mas cadê a libertação da princesa Isabel? As Marias não conheciam e não conhecem essa libertação.
Jogadas nas ruas sem direito a nada, depois de construir todo processo econômico e social do país, lá no alto estava a chamada favela, a nova esperança de milhares de escravizados. Ao subir as periferias, apresenta-se um novo quilombo, com afetos, brigas, empatia, gritos, sorrisos e muito choro. Das senzalas, as Marias foram para as favelas, sem qualquer estrutura e sem qualquer política de direitos para essas novas famílias quilombolas que estavam surgindo. Uma nova narrativa linguística foi construída, novas formas de trabalho foram sendo criadas, novas tecnologias sociais foram implementadas nas comunidades pelos próprios moradores e para os próprios moradores.
Séculos se passaram e aqui estamos nós, no meio do fogo cruzado, da direita conservadora, machista, homofônica, racista, misógina e transfóbica, que tomou o espaço que lutamos após a ditadura militar, nos fazendo pensar em como deixar a luta pelo poder e priorizar a busca da luta pelo povo.
Muito se escuta dizer: “É preciso se voltar para a base”, mas pouco se fala em respeitar essa base, respeitar sua narrativa e sua história. As periferias não são mais as mesmas; a filha da faxineira virou professora e, o filho do seu Marcos, virou doutor. Isso se deu através de um Governo que não se esqueceu de suas raízes e o mesmo não deveria acontecer com as bases firmes que foram criadas nas periferias. Mas agora é preciso unificar e ouvir. É preciso sentar e aprender com seu João, tomar café com a Dona Maria, pois, a narrativa territorial criada por nós (acadêmicos) não chegou na casa da Maria e muito menos na do João. Aliás, muito pelo contrário, escrevemos as histórias deles e não voltamos para formá-los e informá-los que eles mesmos podem reescrever suas próprias histórias e serem os doutores/as da família. A cautela e o diálogo são objetivos primordiais quando falamos sobre voltar para a base.
Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade (SANTOS, 2001).
É preciso entender de qual base estamos falando e quais potências existem dentro dessas bases. O afeto é o primeiro passo para se criar vínculos, independente do papel de filiação, acompanhado de uma escuta sensível, pois as comunidades têm muito a ensinar e aprender. Lembrem-se: Formando um ser humano crítico desta realidade, desenvolveremos nesse mesmo ser humano a vontade de transformar sua realidade, um ser humano com pensamento politizado, com engajamento político e um cidadão que voltará a ter esperança no seu país.
Desta maneira, É PRECISO RESPEITAR AS NARRATIVAS LINGUÍSTICAS QUE SE CRIARAM NAS COMUNIDADES PERIFÉRICAS E SE ADEQUAR A ELAS PARA POLITIZAÇÃO E EMANCIPAÇÃO DAS COMUNIDADES, pois a democracia ainda não chegou às periferias e se queremos fazer chegar temos que nos adequar às suas narrativas.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único á consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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