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Oto e as mãos que contam memórias no Território do Bem

Foto: Manoela Canhamaque

Reportagem: Bianca Lemos, Izaura Maria, Letícia Vilaronga e Loren Peterli

Com quase um século de vida, Oto se tornou guardião de histórias do São Benedito. Inclusive, os banquinhos coloridos de “Seu Oto” já viraram referência de artesanato na região

Nas mãos foto do Sargento Carioca, fundador do Bairro São Benedito – Foto: Julián

As memórias individuais e coletivas de Oto Rodrigues, morador do Território do Bem há cinquenta anos, perpetuam a história da comunidade por meio do artesanato e dos “causos” passados oralmente, de geração em geração. Esse “Senhor de Memória”, que carrega meio século de lembranças do Território do Bem, transmite esse legado com orgulho à própria comunidade, a qual admite ser uma benção.

Nascido em 1927, em Nova Almeida, Oto Rodrigues se mudou para São Benedito em 1964. Os noventa e sete anos vividos por ele até então carregam memórias que ele adora contar para a sua comunidade e visitantes da região, com quem convive muito bem. “Eu não quero encher minha bola não, sabe? Mas aqui, todo mundo fala bem de mim. Eu estou aqui dentro, trabalhando, e eles vêm ‘Seu Oto, benção!’, ‘Benção vô’”, conta Seu Oto, afirmando que isso já virou costume dos moradores da comunidade.

Veja Seu Oto mostrando as lembranças que teve durante a vida:

Com uma forte ligação com a mãe, Oto relembra a frequente benção que recebia dela: a simples alegria de vê-lo brincando com tijolos na frente de casa. Essa conexão, aliada ao apoio financeiro que ela lhe proporcionava, foi fundamental para que ele seguisse a profissão de pedreiro, inicialmente, e de artesão, nos dias atuais.

“Quando eu lembro dela, dá vontade até de chorar, sério mesmo. Mamãe sofreu muito por mim”, diz Seu Oto, que se emociona ao falar da mãe e da ajuda que recebeu para a sua formação, que agora ele reverte para o desenvolvimento da própria comunidade.

Confira o trecho de uma entrevista em que Seu Oto conta sua trajetória e a relação próxima que tinha com a mãe:

O Território do Bem 

Mapa Território do Bem

O Território do Bem é uma região formada por nove comunidades situadas na área central de Vitória: Consolação, São Benedito, Itararé, Bonfim, Bairro da Penha, Gurigica, Jaburu, Floresta e Engenharia. Segundo dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, o Território representava aproximadamente 10% da população de Vitória, totalizando 31 mil habitantes e mais de oito mil unidades habitacionais.

O projeto de comunidade foi criado e nomeado pelos próprios moradores da região, com o objetivo de mudar a percepção negativa das pessoas acerca do território e criar articulações para resolver demandas coletivas. Oto conta que muita coisa mudou desde que se mudou para a região, há cinquenta anos. “Mudou a organização do bairro. Só tinha casa de tábua, até de papelão e tampa de lata. Hoje, até lá no alto tem casa melhor”, reflete Oto, afirmando também que ainda há muita coisa a ser melhorada e que isso também é papel dos governantes.

Escute Seu Oto contando as percepções que possui sobre o Território do Bem.

Segundo a socióloga, atuante no Ateliê de Ideias e responsável pela principal pesquisa no Território do Bem, Denise Biscotto, a ocupação do local começou no início do século XX, com a chegada de trabalhadores, principalmente migrantes de áreas rurais do interior do Espírito Santo e de outros estados. Ela explica que a falta de planejamento urbano no Território do Bem impactou profundamente a qualidade de vida das comunidades locais. A ocupação desordenada e a ausência de regulamentação resultaram em alta densidade populacional e falta de espaçamento adequado entre as residências, o que levou a problemas graves de moradia.

Entretanto, hoje, com as melhorias na infraestrutura e a mobilização comunitária, a percepção dos próprios moradores mudou. O Fórum Bem Maior e outras iniciativas locais ajudaram a valorizar a identidade local, promovendo ações culturais, sociais e de urbanização que contribuíram para ressignificar a imagem do território. “Apesar de ainda enfrentarem desafios, os moradores agora se veem com mais orgulho e estão mais dispostos a afirmar sua origem, reivindicando direitos e mostrando o potencial da comunidade para além dos estereótipos”, pontua Denise.

A mestre em Geografia e autora da pesquisa “Construção de Proposta Metodológica para Mapeamento Participativo de Mobilidade Urbana: Estudo no ‘Território Do Bem’ – Bairro São Benedito – Vitória/ES” pela Ufes, Talita Guimarães, afirma que a escassez de organização e estruturação prejudica qualquer lugar. Apesar do planejamento de bairros, como feito na Praia do Canto e Jardim da Penha, a verticalização constante dos edifícios afeta toda a questão estrutural. Há 20 anos, Talita realizou sua pesquisa no Território, e admite que é tão apaixonada pela gestão comunitária do local, que se tornou líder há sete anos na Ilha do Frade.

“Hoje eu sou líder comunitária no bairro onde eu moro, e entendi que quanto mais simples também, menos condições financeiras as pessoas têm, mais unidas, mais o senso comunitário elas possuem, com essa questão de ajudar o outro, o vizinho, o espaço coletivo. Eu lembro o tempo inteiro do meu projeto de mapeamento participativo e mesmo as pessoas com todas as dificuldades que eles tinham, eles tinham uns aos outros, isso é mais fácil para poder superar e conseguir várias coisas junto ao governo em geral e as empresas. Porque quanto mais vai aumentando o nível social, eu vejo que as pessoas vão perdendo essa organização, esse nível de interação com os outros, mais as pessoas vão ficando isoladas. Então, eu tento fazer no meu bairro o que eu via sendo feito lá, e é muito difícil”, finaliza.

De banquinhos de madeira a peças internacionais 

Conhecido afetivamente como “Seu Oto”, ele ajuda a construir e a perpetuar a memória de sua região com as próprias mãos. Ele conta que aprendeu a fazer marcenaria sozinho, após ser convidado a fazer alguns bancos para a igreja que frequentava. Depois de fechar o “mercadinho Boteco do Vovô” e ficar 10 anos fora da profissão, Oto resolveu transformar o mercado em uma oficina de carpintaria e seguir com o que gostava de fazer.

A sua primeira produção foi bancos coloridos e, após começar a produzir outras peças, o artesão passou a receber encomendas de vários estados e países, levando sua memória individual e coletiva a Porto Seguro, Portugal e Itália. Ele conta, entretanto, que nem sempre é um período bom para as vendas. “Estavam comprando bem, mas agora a crise apertou. Aí diminuiu bastante”, conta o artesão, que também participou da “Bendita Feira”, um evento de comércio de artesanato feito pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo.

Veja quais peças Seu Oto produz:

Seu Oto, que já serviu o exército, foi proprietário de um bar e exerceu a profissão de pedreiro. Atualmente, passa boa parte do tempo no ofício de artesão, produzindo peças de madeira que carregam muita bagagem pessoal e histórias da comunidade. Ao fazer memória com as próprias mãos, por meio de objetos e produtos artesanais, esse “Senhor de Memória” ajuda a construir e a preservar a história da comunidade em que vive, transformando essas peças em um legado do Território do Bem.

Ouça Seu Oto relembrando a época do exército. 

A vizinha de Oto e dona de um bar com o mesmo nome, Rogéria Leonardo, tem 66 anos, e desde os oito reside no mesmo bairro que o marceneiro. A casa onde mora a aposentada era da mãe, e apesar de Rogéria ter se mudado quando casou, há muitos anos retornou e tem permanecido como cúmplice da companhia de Oto.

“Nós somos vizinhos, toda a vida lá, nunca tivemos um problema, ele sempre foi essa pessoa trabalhadora, cuidava da família, depois ele botou um boteco, vendia as coisinhas dele lá, toda a vida. Foi sempre amigo da gente e com toda essa idade continua na batalha, um vizinho muito bom, não perturba ninguém, pelo contrário, só ajuda”, explica Rogéria.

Foto: Kelvin Cerri Costa

A memória coletiva que uma comunidade oferece acerca de sua região, através também, das memórias individuais de cada morador, como no caso do Seu Oto, contribui para que não apenas as histórias, mas também as demandas dessa comunidade sejam ouvidas e trabalhadas em conjunto. “Eu valorizo muito essa comunidade. Essa comunidade é uma benção. […] O que faz ela ser especial é o respeito!”, diz Seu Oto, afirmando que esse sentimento proporciona uma comunidade unida, e com senso de pertencimento.

Calango Notícias

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