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Amelia Rosa: o significado vivo de amor e cuidado

Foto: Gabhy Almeida 

Aos 71 anos, dona Amelia teve uma vida dedicada ao próximo, ao trabalho e à esperança de que as coisas, ao chegarem no final, seriam felizes

“O meu lugar / é cercado de luta e suor / esperança num mundo melhor” são versos de “Meu Lugar”, de Arlindo Cruz. Os versos do carioca se encaixam — e talvez até resumem — na vida de Amelia Rosa da Silva Ferreira. Mineira nascida em Mantena, com 71 anos e moradora de São Benedito há 40 anos, ela teve uma vida dura, com dificuldades, mas nunca deixou de sonhar com uma vida melhor e digna para a família.

A jornada começou quando ela e o esposo se mudaram para Vitória, sem bens materiais, carregando apenas uma mala de roupas e as duas filhas pequenas. Eles saíram de Mantena em busca de trabalho e uma vida melhor, mas o início foi marcado por muitas dificuldades. “A gente veio sem nada, só com uma bolsinha de roupa, e o primo do meu esposo que nos ajudou”, relembra.

Morando de favor em um barraquinho e enfrentando escassez, a família batalhou até conseguir adquirir um pequeno terreno, onde hoje estão estabelecidos. “Era tudo de tábua, aqueles negócios velhinhos”, fala. Ela também destaca que, junto com outras pessoas, ajudou na construção da própria casa. “Compramos dois barracos e, de pouco em pouco, fomos construindo. Eu carregava cimento e ajudava na massa”. 

A vida no bairro, no entanto, nem sempre foi fácil. Lidar com a ausência de infraestrutura básica, como saneamento e transporte, fez parte da luta diária. “Não tinha ônibus, e a água era uma dificuldade. Às vezes, a gente tinha que beber água da chuva”, recorda. Ela acompanhou de perto o crescimento e as mudanças no bairro, até a chegada dos primeiros serviços públicos.

Cuidar de casa, cuidar dos bisnetos, cuidar de passarinhos, cuidar de horta, cuidar de roupa… e o cuidado não acaba. A vida de dona Amélia é resumida nesse carinho com o próximo. “A gente não pode ficar parado. Tem que inventar coisa pra fazer”, conta.

Mesmo com dores frequentes por conta do reumatismo e da osteoporose, dona Amélia não se permite ficar parada. “Tem dias que eu penso em deitar um pouco, mas logo levanto porque tem coisa para fazer […] Acordo às quatro da manhã e vou dormir lá por meia-noite, meia-noite e meia.”, diz. 

RAÍZES DE CUIDADO

Quando Almir Sater e Renato Teixeira cantam “ando devagar porque já tive pressa / e levo esse sorriso porque já chorei demais”, talvez eles estejam resumindo uma grande parte da infância simples e cheia de desafios de dona Amelia.

Quando era criança, era uma das responsáveis pelo almoço. Isso acontecia porque a mãe precisava cuidar de outras atividades domésticas e cuidar dos outros dez irmãos. “Eu e meu irmão… a gente colocava um caixote, subia em cima e eu fazia a comida no fogão de lenha”. 

“A minha mãe que lavava a roupa. A gente tirava água na cisterna para lavar tudo. A gente acordava cedo pra fazer tudo, fazer o café. Nós éramos pequenininhos. Nós nunca brincamos na vida”, lembra com tristeza.

Uma das poucas oportunidades de ter um brinquedo foi frustrante. Quando conseguiu fazer uma boneca, a mãe descobriu e acabou destruindo todo o brinquedo. “A gente tinha um pé de goiaba lá, eu subi pra brincar com a boneca… ah menina, pra que? Minha mãe viu, me chamou, pegou a boneca e enterrou dentro da lama. A gente nunca mais brincou”, lembra com tristeza.

Essa realidade só mudou na vida adulta, quando dona Amelia ganhou bonecas de presente. Ela conta de uma boneca que encontrou jogada no lixo, em meio a caixas de leite. “Era novinha, mas estava toda cortada, com os pés e as mãos quebrados. Trouxe para casa e, mesmo sendo de madrugada, comecei a consertar. Quando terminei, era a boneca mais bonita de todas”, diz, com um sorriso.

ÁRVORE DO CUIDADO

O amor pela família é algo gigantesco na vida de dona Amélia. Ela teve cinco crianças, mas apenas duas sobreviveram. Ela conta que o médico dizia que ela não poderia ter filhos, o que tornava toda gravidez extremamente preocupante. 

O primeiro bebê morreu ainda pequeno, pouco tempo depois do nascimento. Dona Amelia lembra que na gravidez, morou na Bahia e lá passou por muito sofrimento. “Na Bahia, me davam cachaça e me amarravam durante o parto. Foi difícil demais”, conta relembrando a época. Como a região não tinha cemitério, o bebê não teve enterro. “Era grandão, mas nasceu depois de tanto sofrimento. A cachaça que me deram matou o menino”, relembra a história da morte do filho. 

As outras duas bebês falecidas eram garotas. Uma faleceu com seis meses de vida quando moravam em Colatina. A outra morreu por conta de uma tragédia durante uma obra dentro de casa. No dia, Amelia tinha caído em cima de alguns ferros enquanto ajudava na construção de um muro em casa. “Caí e bati com a barriga e foi na cabeça da menina. Matou ela. Chegou lá e ela já tava morta”, relembra com tristeza.

EMPATIA COM O OUTRO

“Tinha vezes que eu saia de lá chorando”. Foi assim que dona Amelia definiu como era trabalhar como doméstica na região do Parque Moscoso. Ela é uma das milhares de mulheres que trabalharam com o cuidado do lar de outras pessoas. O dia a dia de trabalho envolvia muito mais do que limpar e organizar a casa. Ela também cuidava das crianças com uma dedicação única, já que sempre teve afinidade com os pequenos.

Apesar de gostar de trabalhar, ela passou por situações difíceis pela falta de direitos trabalhistas e por patrões que nem sempre respeitavam o que ela precisava fazer. “Se eu tivesse marcado uma consulta, eu tinha que chorar até aquela consulta chegar para conseguir ser liberada. […] Eu falava que tinha que ir ao médico e ela falava que não precisava. Ela falava que eu não precisava de pegar atestado.”, relata. 

Assim como no cinema, em que a personagem Val, de “Que Horas Ela Volta?”, sofre com situações desconfortáveis com os patrões, dona Amelia também teve de conviver com isso. Um dos problemas era a falta de carteira assinada. Em um dos trabalhos, ela conta que a chefe deixava claro que se pudesse, pagava um salário maior. “Ela dizia ‘Amélia você sabe fazer tudo, se eu pudesse eu te pagava mais’. Eu sei disso, né? Eu fazia tudo lá.”, ironiza.

Dona Amelia lembra que certo dia, chegou na casa de uma idosa que cuidava e escutou ela pedindo por socorro. “Já passava mais de hora que ela falou que não conseguia levantar”. Ela conta que a idosa não tinha forças para levantar e que foi ela a responsável por fazer todos os cuidados. “Perguntei se queria tomar um banho, se queria tomar um café.”, fala.

“Ela ia morrer”, dona Amelia afirma. No momento, ela deu café para a idosa, deu banho e colocou-a de volta na cama para tentar melhorar. “E sabe o que ela tinha? Nada. Tomou uns cinco paracetamol de 700.”. No outro dia, a idosa seguiu da mesma forma, precisou ir ao Pronto de Atendimento e, após um mês internada, precisou fazer hemodiálise.

AMOR SEM FIM

Acordar cedo, cuidar das crianças e de cada pequeno detalhe do dia é a rotina de dona Amélia. As crianças estudam no período da tarde, mas desde cedo é hora de começar a se arrumar. Depois do banho, a tarefa é cuidar dos cabelos e conferir para que não haja piolho. “A gente tem que olhar todo dia, passando o pentinho. Senão, ninguém aguenta”, destaca.

A rotina para ir à escola segue. Amélia cuida dos pequenos dando comida. Mas a história com as crianças vai além de cuidar apenas para irem à escola. Cuidar dos bisnetos é um ato de carinho, que ela relata fazer de coração. Dona Amélia conta que certo dia, as crianças falaram que queriam fazer curso de comida para aprender a cozinhar, “mas aí falaram: panela velha é que faz comida boa, né vovó? Então tem que aprender”.

E como avó, ela não pode ter deixado passar aqueles clássicos “remédios de vó”. Dona Amélia aprendeu essas técnicas com a mãe, que sempre foi uma mulher simples e que queria ajudar as crianças. “Você imagina só. Dor de ouvido. Colocava o óleo morno na colher, pingava no ouvido e melhorava na hora”, lembra.

O cuidado com a saúde que aprendeu com a mãe acaba refletindo na maneira em que ela cuida dos bisnetos e até dos vizinhos. “Fui aprendendo, né? A vizinha fala: ‘ó quem precisar de remédio, vai na dona Amélia que ela te ensina. O que ela mandar você tomar, é bom’”, brinca.

O CUIDADO COM A COMUNIDADE

Foto: Wagando

O cuidado vai além da família e chega à comunidade. Dona Amélia contribuiu para a criação do Ateliê de Ideias em 2003, um projeto que trabalha com soluções sociais e se tornou muito importante para a região do Território do Bem. Ela participava de feiras de grupos de empreendimentos produtivos solidários.

Não era só isso. Dona Amélia fazia parte de um grupo do curso de costura — por mais que ela deixasse claro: “sou uma pessoa que não aprende nada com ninguém, faço o que vem na cabeça” —, criava almofadas e ajudava na produção de artesanato. Ela lembra que, enquanto fazia parte do Ateliê, os jovens criavam até móveis nos cursos.

“Era bom aquela mulherada, aquele monte de tecido e seda para pintar, né? Ai, que bom era passar o dia”, lembrou dona Amélia da época em que ia ao Ateliê.

Mesmo com a alegria de fazer parte, chegar ao Ateliê não era das coisas mais fáceis. Isso só mudou anos depois, quando houve a construção de uma das igrejas em São Benedito, que acabou recebendo também uma pracinha e dando espaço para o projeto.

Em relação ao projeto, uma das maiores vontades é que ele siga vivo e com os jovens participando. “Era bom continuar, né? Botar as crianças para aprender”, diz. O Ateliê se transformou em um espaço de mudança para a vida de muitas pessoas e, até hoje, mostra resultados para a comunidade.

Foto: Larissa de Angelo

CULTIVO DO CUIDADO

Em casa, o trabalho vai além de cuidar das crianças. No pequeno quintal localizado na entrada de casa, o cuidado se estende aos animais e às plantas. Ela cria galinhas e tem um cachorro que faz parte da família. A paixão pela horta é evidente quando ela conta sobre o que nasce na terra do quintal. 

“A galinha eu ganhei ontem. As minhas couves, com esse sol, tão tudo morrendo, mas vou coisar a terra e plantar de novo. E a cebola que eu tinha plantado… tinha um pé de cebolinha ali, você viu como cresceu? Cavuquei ali e apareceu duas cebolonas.”, contou com entusiasmo sobre uma de suas paixões.

PRINCÍPIOS QUE GUIAM

Dona Amélia acredita que cuidar é um ato de amor, não apenas para a família, mas também para a comunidade. Para ela, ajudar o próximo é uma missão. “A Bíblia, a palavra de Deus, diz que o vizinho é como o sol do almoço, precisamos conviver bem com todos”, reflete. Esse pensamento é o que faz com que ela seja tão querida pela população da região.

Ela destaca que aprendeu na igreja a importância de conversar com todos e conviver com as pessoas independentemente de quem seja. “Deus não faz distinção de pessoas. Por que a gente vai fazer? A gente tem que conviver bem, unido um com o outro”, destaca.

Toda quinta-feira, dona Amelia vai até a igreja no Bairro da Penha. Para ela, essa é uma das coisas mais importantes da semana. E assim, Amelia vai vivendo com dificuldades e alegrias, pensando sempre que “Deus fará / absurdos contanto que a vida seja assim / assim, um altar / onde a gente celebre tudo o que ele consentir”, como canta Gilberto Gil.

📝 Matéria: Clara Fáfá, Larissa de Angelo, Luiz Edmundo Araújo e Thalita Gomes. – são alunos do curso de Jornalismo da FAESA, sob supervisão da professora de Projeto Integrador V (2024/2), Lara Rosado.

Calango Notícias

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