Foto: Nicoly Reis
Entre a escada irregular e a ambulância que não chega; entenda como a lei cobra acessibilidade qualificada
Matéria: Nicoly Reis
Escadas da exclusão: A falta de acessibilidade nas escadarias do Território dificulta o acesso a outros direitos fundamentais.
O emaranhado de escadarias e becos que formam o Território do Bem carregam a história de uma ocupação marcada pela resistência. Contudo, esses mesmos caminhos, forjados pela necessidade e pela força dos seus moradores, se converteram em barreiras físicas e sociais, isolando milhares de cidadãos do Direito mais básico: o de ir e vir com dignidade. A falta de acessibilidade qualificada não é um mero déficit de infraestrutura; é a negação cotidiana de saúde, educação e justiça.
A realidade do dia a dia nas comunidades é de esforço e dependência. O morador José Alves Pereira, que vive há 40 anos em Floresta, relata que levar idosos, crianças ou deficientes físicos a uma consulta médica exige que outros vizinhos os carreguem no colo ou em cadeiras, dada a falta de rampas suficientes. Essa dificuldade se agrava à noite, quando o escuro de becos sem iluminação pública esconde degraus irregulares e aumenta o risco de acidentes.

O problema atinge o coração da segurança e da vida social. Ivete Pereira e Souza, presidenta da Associação de Moradores de Floresta e Consolação, resume o descaso com um exemplo. “Se uma ambulância é acionada às 12h, ela só vai conseguir subir por volta das 17h”. Ela reforça que, na ausência de vizinhos disponíveis, a pessoa com dificuldade de mobilidade tende a ficar “trancada dentro da própria casa”.
Em Jaburu, o cenário não é diferente. O presidente da associação, Sebastião Luiz, explica que os pedidos de restauração das escadarias são feitos desde 2010. A demanda central é por melhorias que realmente incluam, como pisos antiderrapantes, degraus nivelados e com espaçamento correto, e corrimões, elementos que raramente são implementados com o devido estudo de acessibilidade. A falta desses elementos compromete o trajeto diário, inclusive das crianças que precisam acessar a escola ou de idosos que precisam ir em consultas.
“A deficiência é o obstáculo Social, não a pessoa”
O Defensor Público consultado pelo Calango Notícias, Tiago Bianco, explica que, juridicamente, o conceito de deficiência mudou. Ela não é mais uma característica que identifica ou caracteriza a pessoa, mas sim um obstáculo social ou físico criado pelo meio.

Segundo ele, se você tem um lugar completamente acessível, essa pessoa não tem nenhum obstáculo, não tem um conceito de deficiência. Portanto, quando as escadarias irregulares impedem o acesso a um posto de saúde, o poder público está ferindo o Direito à saúde. Quando a pessoa não consegue acessar a Defensoria, o acesso à justiça é negado. A acessibilidade é um meio para outros direitos, como a higiene pessoal e a dignidade.
O defensor enfatiza que o Poder Público tem r esponsabilidade objetiva (responde pela omissão, sem que a intenção precise ser provada) e não pode usar o princípio da “reserva do possível” (falta de orçamento) para negar direitos constitucionais fundamentais. A lei ainda estabelece prioridades legais para o acesso a serviços, como o Estatuto da Pessoa Idosa (idosos acima de 60 e 80 anos) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
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Desenho urbano em contraponto à realidade
Para o arquiteto Renan Grisoni, que trabalha há mais de 15 anos com projetos na comunidade do Jaburu, o desafio da mobilidade tem resultado em um esvaziamento dos bairros.
“As pessoas vão ficando mais velhas e vão procurar bairros lá embaixo… Muita gente tem ido para Cariacica e para Serra. Vemos uma fala muito interessante dos mais jovens: ‘Eu preciso tirar meus pais daqui, porque eles são idosos e não conseguem andar aqui’”, esclarece o arquiteto.

O arquiteto defende um planejamento integrado, que veja a mobilidade urbana com a mesma seriedade dada à saúde e à educação, pois “é tudo integrado”. A acessibilidade ideal, chamada de acessibilidade qualificada ou desenho universal, precisa ir além do corrimão.
Segundo o especialista, a prioridade deveria ser buscar soluções que confiram autonomia:
- Rampas em vez de escadas: o arquiteto aponta que os próprios moradores do Jaburu “preferem mais rampa do que [escada]”.
- Soluções tecnológicas: ele cita exemplos de cidades com terras semelhantes, como Salvador, que usa planos inclinados e elevadores para locomoção.
- Planejamento de risco: além da construção de rampas com angulação correta, ele lembra que a falta de limpeza em épocas de chuva, que gera lodo e escorrega, também é uma forma de negação de acesso.
A conclusão do problema, de acordo com o arquiteto, é que a omissão do poder público em fornecer estrutura básica faz com que os Direitos urbanísticos não cheguem à comunidade. Ele enfatiza que o problema da acessibilidade nos morros de Vitória não é um problema da comunidade, mas sim, um problema da cidade.
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